São vidas que estão em causa, não números

 


São vidas que estão em causa, não números




 

 

 Gerir (e viver) uma crise com esta dimensão e gravidade é, certamente, um enorme e árduo desafio que nos consome e que nos esgota, pouco a pouco, pedaço a pedaço: não existem certezas, não existem decisões infalíveis, e rapidamente as convicções dão lugar à dúvida e à hesitação. Portanto, que fique claro: se o comum cidadão vive, ele próprio, consumido por essa insegurança e por essa inquietação, calculo que as pessoas que têm à sua responsabilidade a gestão desta imensa crise estejam diariamente sujeitas a uma pressão ainda maior, pois carregam nos seus ombros a responsabilidade e a incumbência de tomar decisões que, em última instância, podem fazer a diferença entre a vida e a morte. E, com esse peso, vem a colossal angústia e o tremendo desassossego de ter nas suas mãos a vida de dezenas, milhares ou milhões de pessoas, pois falamos de pessoas de carne e osso, com ideais e com sonhos por cumprir, e não de números numa tabela: que não se confunda um ser humano com um número, pois quando um homem morre há sempre um pedaço de mundo que se extingue.


 Decidir não é fácil, e em plena catástrofe não é mesmo nada fácil. Todavia, chegámos a um ponto em que claramente se tornou necessário tomar uma posição firme, sólida e consistente que nos permita ultrapassar estes tempos adversos sem que nunca se coloque em causa aquelas que são a mais essenciais e imprescindíveis estruturas para a nossa sobrevivência: os serviços de saúde. É disto que se trata e é esta situação que devemos procurar salvaguardar, pois o colapso dos serviços de saúde significaria a morte indigna e abundante de homens e mulheres que são parte deste mundo e que são muito mais do que números, significaria a destruição de inúmeras famílias e uma profunda ferida difícil de sarar: seria um tempo de trevas e de ruína. 


 Porém, não existem soluções ideais ou respostas milagrosas: tudo tem um custo, tudo tem contrapartidas. Neste sentido, cabe aos responsáveis políticos e às entidades públicas competentes escutar os especialistas e os peritos: não só aqueles que, no conforto do seu gabinete, analisam e projectam números e cenários, mas também aqueles que experienciam no campo de batalha a decadência e o abismo, aqueles que testemunham o sofrimento humano e a agonia de não ser acudido atempadamente. Quem vive esta crise dentro dos hospitais deve ser atentamente escutado, pois poderá ser a diferença entre a recuperação e o colapso dos cuidados de saúde. É preciso não perder (ainda mais) a componente humana dos cuidados de saúde: as pessoas não são somente meros números em tabelas ou gráficos, são pais, mães, avós, amigos, gente em agonia e com medo, muitas delas angustiadas com a sua solidão, muitas delas desesperadas por um tratamento ou por uma intervenção urgente. Todas elas existem e todas elas contam.


 Provavelmente, é mais cómodo e menos cansativo atribuir culpas e responsabilidades a entidades externas: do Governo à Presidência da República, da Direcção-Geral da Saúde ao Instituto Nacional da Saúde Dr. Ricardo Jorge, das Câmaras Municipais ao Parlamento. Todavia, importa salientar que, na verdade, se é em sociedade que vivemos esta crise, é em sociedade que devemos procurar combater e derrotar este vírus. Portanto, esta missão deve ser transversalmente partilhada por todos, assumindo cada um de nós o dever de cumprir as responsabilidades que nos dizem respeito, pois somente assim, unidos, conseguiremos ultrapassar este tremendo desafio. Que fique claro: se chegámos a este ponto não foi só porque houve inoperância, desleixo e imprudência por parte das entidades públicas; se chegámos a este ponto foi porque muita gente não cumpriu as suas responsabilidades individuais e cívicas, pois é aí, a montante, que o verdadeiro problema começa. 


 É difícil tomar decisões cujo impacto na vida quotidiana das pessoas é colossal, contudo, neste momento, é urgente tomá-las: decisões consistentes, fundamentadas e adequadas ao actual contexto crise. Infelizmente, muitas das decisões que se vão tomando - sejam elas boas ou más, úteis ou inúteis - têm manifestado evidentes inconsistências e incoerências, o que, para muitas pessoas, não só reforça o seu sentimento de dúvida e incerteza, como, por outro lado, agrava a sua desconfiança e descrença em relação às entidades públicas responsáveis pela gestão da pandemia.  Precisamos que, a montante, todos os indivíduos sigam as recomendações das entidades de saúde e cumpram as boas práticas estabelecidas, portanto, é fundamental que confiem nelas e que as considerem credíveis. 


 Neste sentido, há que reflectir e decidir de forma fundamentada, consistente e adequada às circunstâncias reais (e não puramente teóricas). Não sou especialista em nenhuma área da saúde, todavia, o exercício da filosofia permite-me detectar falácias e inconsistências a milhas de distância. Permitam-me, assim, assinalar brevemente dois aspectos essenciais:

 a) O primeiro diz respeito ao enquadramento ético da acção das entidades públicas e dos dirigentes políticos: 

 - Por um lado, é preciso relembrar e sublinhar que, actualmente, não estamos a viver num contexto normal e comum, típico e frequente. Na verdade, a situação actual é altamente invulgar, excepcional, preocupante e grave. Portanto, é evidente e indubitável que o mindset habitual não serve nem se adequa a esta realidade tão singular: os factores, critérios e princípios – o raciocínio – que sempre orientaram as decisões governativas, não podem obviamente ser os mesmos para uma situação de catástrofe tão anómala como a actual. É preciso perceber que, neste contexto, há dimensões que, se antes da pandemia eram relevantes, neste momento de crise, não passam de pormenores, e, discutir pormenores, é desperdiçar tempo e recursos valiosos.

- Por outro lado, devem ser definidas claramente e sem hesitação as prioridades, os critérios e os valores éticos que servirão de base para as decisões governativas neste contexto pandémico, sobretudo em contexto de catástrofe. Não podem surgir dúvidas: a vida humana deve estar em primeiro lugar, incondicionalmente e sem ambiguidades, pois enquanto a economia e a educação podem recuperadas, demore o tempo que demorar, a morte é irreversível. E, em caso de dúvida e incerteza, opte-se sempre pela decisão que melhor proteja e salvaguarde a vida humana.


b) O segundo aspecto diz respeito às inconsistências e incongruências que, muitas vezes, têm acompanhados as decisões governativas. Tomemos como exemplo a situação das escolas:

 - As crianças com mais de 10 anos (a partir do 2º ciclo) são obrigadas a utilizar máscara facial no espaço escolar, nomeadamente durante as aulas, uma vez que se considerou que a partir desta faixa etária existiriam relevantes factores de contágio. Contudo, no momento crítico actual, o ensino presencial mantém-se. 

 - Parece ser unânime que a capacidade de contágio das crianças e jovens a partir dos 12 ou 15 anos é semelhante à dos adultos. Contudo, o ensino secundário e o ensino superior continuam a funcionar em regime presencial. 

- Defende-se que é a população jovem, algures entre os 20 e os 29 anos, que está a fazer crescer o número de novos caos. Contudo, o ensino superior mantém-se presencial. 

 - Sustenta-se que o ensino presencial é completamente fundamental nesta fase, uma vez que se deve procurar manter a qualidade da aprendizagem das crianças e jovens. Contudo, nesta fase, em qualquer estabelecimento de ensino básico e secundário é constante verificarmos a existência de turmas em isolamento profiláctico. São situação frequentes praticamente já se tornaram regra, são situação abruptas que causa uma enorme perturbação nas dinâmicas familiar e escolar, são situações que, efectivamente, não favorecem em nada a aprendizagem das crianças e jovens. Não são considerados surtos, não são valorizados estatisticamente. Todavia, basta estar no terreno para se constatar que, na zona Lisboa, desde o início do ano lectivo, é fácil encontrar turmas que estiveram já em isolamento profilático (14 dias) por quatro, cinco ou seis vezes. Adicionalmente, também não é raro constatar-se que existem turmas do ensino básico e secundário em que uma parte da turma está em isolamento profiláctico, enquanto os restantes se mantêm em ensino presencial (sobretudo por existirem alunos que realizam outras actividades e dinâmicas extracurriculares dentro do espaço escolar). É esta situação promotora de um adequado processo de aprendizagem?

- Defende-se o papel fundamental dos inquéritos epidemiológicos na quebra de cadeias de transmissão, promovendo-se recentemente a contratação urgente de recursos humanos para se tentar mitigar o largo atraso que se verifica na realização destes inquéritos, da mesma forma que se salienta a importância da capacidade de testagem de casos suspeitos. Contudo, não se tem em conta que os casos de infecção identificados nas escolas e as contínuas situações de isolamento profiláctico das turmas representam um acréscimo de trabalho para as unidades de saúde pública (que não têm mãos a medir) e têm um impacto directo na capacidade de testagem. 

 Etc.


 São vários os exemplos, são várias as decisões. Não se trata de ser contra ou a favor, de concordar ou discordar, nem de salientar os seus benefícios ou as suas limitações, pois somente alguém com competências na área da saúde poderá tecer essas considerações. Trata-se, sim, de colocar em evidência as indubitáveis inconsistências e incongruências que colocam em causa, por um lado, a validade dos argumentos que procuram sustentar as decisões governamentais e, subsequentemente, a confiança da sociedade nessas mesmas decisões.


 Não sou médico, nem epidemiologista, nem cientista, nem pertenço sequer  àquele grupo de pessoas que, de uma forma ou de outra, se formou nas áreas das ciências da saúde ou das ciências naturais. Portanto, seria pretensioso e arrogante me propor a encontrar soluções específicas ou estratégias globais para uma problemática tão complexa à qual sou, profissionalmente, alheio. Contudo, infelizmente, constato que essa óbvia limitação não tem impedido dezenas (ou centenas) de indivíduos de se pronunciarem publicamente sobre possíveis estratégias e medidas de saúde pública a implementar: das redes sociais à comunicação social, são muitos os juristas, sociólogos, historiadores, professores, engenheiros, matemáticos, associações, sindicatos, confederações, entre muitos outros, que, com toda a presunção e imodéstia, se assumem como entidades especialistas no assunto, impulsivamente emitindo pareceres e apresentando firmemente as melhores estratégias a adoptar. Não é propriamente raro ou incomum assistirmos a esse fenómeno, mas, no que à saúde pública diz respeito, neste momento, estão vidas em causa. E, se, por um lado, as redes sociais são naturalmente um imenso pântano onde é difícil garantir a circulação de informação fidedigna e autêntica, por outro lado, é da responsabilidade da comunicação social, neste tempo de profunda crise, assumir deontologicamente a sua missão enquanto canal difusor de informação confiável e de conhecimento fundamentado no que concerne à pandemia e à saúde pública, procurando não promover a desinformação e a exposição continuada de indivíduos que, não sendo especialistas em coisa nenhuma, insistem em difundir teorias da conspiração, estratégias sem base científica ou análises descabidas que só pretendem semear a desconfiança das pessoas em relação às entidades e autoridades de saúde. Hoje, mais do que nunca, devemos tentar valorizar o conhecimento e não o conspurcar (mesmo que não seja essa a intenção): nesta imensa crise, seria intelectualmente desonesto e eticamente repreensível. 



 Não ser especialista em saúde não significa que devamos cultivar um silêncio absoluto e sofrer calados e amordaçados. Não é disso que se trata. Todos nós temos uma relevante missão a cumprir enquanto cidadãos no que diz respeito à gestão da pandemia, nomeadamente no âmbito daquela que é a nossa área profissional: devemos assinalar as nossas preocupações e expor os nossos medos, devemos evidenciar as nossas dificuldades e os nossos desafios, devemos manifestar e descrever os problemas e adversidades que estamos a experienciar, pois somente assim será possível encontrar soluções para tentar mitigar o impacto nefasto desta crise. À parte os casos de petulância e imodéstia, compreende-se o desespero e a angústia de não se conseguir colocar comida na mesa, todavia, com toda a honestidade intelectual, podemos assinalar os nossos problemas e dificuldades, mas não devemos andar a condenar ou a patrocinar medidas e estratégias de saúde pública por conta própria, as quais, na verdade, excedem grandemente as nossas competências e aptidões. Não nos esqueçamos: é a vida das pessoas que está em causa e, aqui, sendo uma crise de saúde pública, a informação fidedigna e o conhecimento científico (e a confiança nos mesmos) salvam vidas, literalmente.


 Defender a vida humana, unidos e em sociedade: esta é a missão e o dever de todos nós.


 

Diogo da Costa Ferreira

Lisboa, 18/01/2021









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